Decisão da Justiça Federal obrigou União, Estado de Mato Grosso do Sul e Prefeitura de Campo Grande a, juntos, cobrirem o déficit da Santa Casa entre outubro de 2011 e maio de 2018, bem como iniciem imediatamente pagamentos que banquem o rombo diário no maior hospital público de Mato Grosso do Sul.
A conta, sem a devida correção com juros, já supera os R$ 275 milhões, isso sem considerar o período após maio de 2018 e até os dias atuais.
A aplicação do prazo prescricional (período de alcance da lei sobre uma determinada causa) de 5 anos a contar do início da tramitação do processo impediu que o pedido da Santa Casa alcançasse um período maior, como o início da intervenção na unidade, em 2005.
A ordem partiu do juiz Pedro Pereira dos Santos, da 4ª Vara Federal da Capital, em sentença que tenta dar fim a um impasse jurídico bem anterior a 2016 –ano em que a ABCG (Associação Beneficente de Campo Grande) recorreu à Justiça para tentar cobrir despesas impagáveis e que, recentemente, culminaram em ameaças de paralisação de funcionários, incluindo enfermeiros e médicos, e atrasos no pagamento de fornecedores.
A decisão, porém, estabelece limites e admite possibilidade de revisão. A princípio, os entes públicos devem começar já neste mês a repassar valores superiores a R$ 4,8 milhões além do repasse mensal devido com base nas apurações do SUS (Sistema Público de Saúde). Por outro lado, a decisão de 9 de setembro de 2021, divulgada no Diário de Justiça Federal, proíbe o hospital de auferir lucro com os valores.
Revisão do contrato
A Santa Casa pediu a revisão do contrato com o SUS, calçado no título de entidade filantrópica e que, desde 2004, opera no regime de contratualização (que, no lugar de reajustar valores pagos, injeta valores de forma “aleatória” para cobrir necessidades específicas, narra no processo).
Conforme o hospital, pelo menos 60% de sua capacidade instalada deve ser direcionada a pacientes do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, a contratualização seria uma “coação”, impedindo negociações. Alegando urgênciano caso, a ABCG alertou que a qualidade de seus serviços corria risco, pleiteando o bloqueio de valores referentes à defasagem média mensal da Santa Casa –e, ao final, quitarem as parcelas vencidas e vincendas no valor da diferença entre o devido e o efetivamente pago.
Público e privado em uma só conta
União, Estado e Prefeitura se manifestaram inicialmente. Entre as alegações para negar o pedido, estava tanto a de que apenas o Conselho Nacional de Saúde poderia corrigir a Tabela SUS (referência de pagamentos na rede pública), proibição de abertura de despesas acima dos orçamentos por período e até omissão do Governo Federal no caso.
Outro ponto, levantado pela defesa do Governo de Mato Grosso do Sul e logo encampado no andamento do processo, foi que a Santa Casa atende também pacientes conveniados e particulares, o que tornaria necessário demonstrar “a origem da precária situação financeira sustentada na inicial” para justificar a necessidade de mais verba pública.
Este foi um dos pontos mais atacados pelo magistrado em sua decisão que, retornando ao passado, lembrou que o hospital esteve sob gerência de uma Junta Interventora dos 3 entes entre 2005 e 2013 e, neste período, não foi providenciada a separação entre as receitas do SUS e da área particular, o que põe em xeque o argumento de que a segregação financeira é essencial.
“Daí, se deveras tal procedimento fosse passível de alguma crítica, sem dúvida teria sido modificado naquele período, o que não veio a ocorrer”, anotou o magistrado, repercutindo ainda posicionamento do parecer do MPF (Ministério Público Federal):
“Verifica-se a contradição no comportamento dos réus, uma vez que o Poder Público esteve à frente da administração da Santa de Campo Grande por mais de 8 (oito) anos e não procedeu ao desmembramento de contas tão defendido nesta ação. A conclusão não pode ser outra senão a de que nem mesmo o Estado acredita que se trata de providência exequível”.
A ação ainda destacou que, por conta da intervenção, a Santa Casa teria acordado em não discutir judicialmente valores ou prejuízos referentes ao período em que a administração da unidade coube ao poder público.
Perícia confirmou rombo
O juiz federal determinou que fosse feita perícia técnica que mapeasse a situação econômico-financeira do hospital. O serviço identificou “números significativos dos valores pagos a menor, o que, na essência, confirma integralmente o prejuízo havido com o cumprimento do contrato”, sendo passível de ressarcimento.
O trabalho final foi contestado, forçando o profissional contratado –ex-presidente do Conselho Federal de Administração e Regional de São Paulo da categoria, alheio ao contexto estadual– a novamente se manifestar, diante da contestação de que o déficit apresentado pela Santa Casa viria exclusivamente do SUS.
O trabalho confirmou tal teoria e, após sua complementação, as partes desistiram de produzir outras provas ou mesmo deixaram de apresentar contestações.
O perito alegou que, de outubro de 2011 a setembro de 2016, o “período vencido”, e de outubro de 2016 a maio de 2018 (considerado vincendo), a Santa Casa operou “com déficit sistemático em suas contas, diretamente relacionadas com o SUS”, graças a defasagem da tabela, dos valores contratualizados, demora nos repasses e endividamento do hospital –que buscou bancos privados, com taxas de juros maiores, a fim de tentar sanar a situação–, bem como aumento nos custos de serviços e insumos.
No período vencido, o desequilíbrio resultou em rombo de R$ 177.929.916. No vincendo, o foi de R$ 97.662.792. No total dos períodos, o déficit da Santa Casa somou R$ 275.592.708.
A perícia ainda salientou que, os atendimentos particulares e de convênios não influenciaram no déficit da Santa Casa. “Pelo contrário, a influência foi positiva no sentido de que as atividades, com a exclusão do SUS, foram superavitárias”. O problema é que, no período abordado na ação, 90% dos pacientes eram do SUS e 10% de outra origem.
Competência compartilhada
Pereira da Silva destacou que a competência no caso caberia não apenas ao município, por conta da gestão plena em Saúde, mas também ao Estado e União, responsáveis por eventuais reajustes no repasse ao hospital diante do interesse dos pacientes em ter o serviço do SUS remunerado de forma justa –precedente do STF de 2019 já colocava os entes da federação como solidariamente responsáveis por demandas da Saúde, cabendo à Justiça direcionar, segundo as regras, competências e ressarcimentos de ônus financeiro.
Ainda segundo o juiz, a ação não discutia prejuízos com a intervenção ou os atos praticados pelos Poderes no hospital, mas sim o reequilíbrio financeiro do contrato “que vigorou inclusive naquele período”.
Pereira da Silva rememorou decisão de seu punho, em ação de 2013, que garantiu aos anestesistas da Servan direito a remuneração apropriada no Hospital Universitário de Mato Grosso do Sul, diante dos valores baixos pagos na Tabela SUS:
“Significa dizer que o particular tem o lídimo e cristalino direito de reivindicar valor justo no início da avença e equilibrado no decorrer da sua execução. E entende-se por valor justo aquele que espelhe o efetivo preço do trabalho oferecido ao SUS”, citou na ocasião.
“[A Santa Casa] Trata-se do maior hospital do Estado de Mato Grosso do Sul, responsável pelo atendimento de pacientes da capital, interior e até mesmo de países vizinhos, inclusive nos tratamentos de alta complexidade e pronto socorro, enquanto os hospitais públicos (HU e HR) são de porte bem menor. Em outras palavras à autora, com ou sem convênio, não é dado o direito de simplesmente deixar de atender os pacientes do SUS, o que só ocorrerá se e quando os entes públicos requeridos edificarem um hospital de igual porte”, anotou o juiz.
Ele reiterou que a Santa Casa foi alvo de intervenção quando foram abertas discussões sobre a remuneração devida ao hospital, sendo prometido devolver a unidade à ABCG com as contas saneadas, o que prova a indispensabilidade do hospital.
“Em suma, estimo que se porventura o valor pago pelo SUS não remunera os serviços, a prestadora autora merece ser recompensada, pouco importado o nome que se dê ao instrumento que a vincule ao SUS, ou seja, se contrato e convênio ou até mesmo na ausência destes”, frisou, descartando caber apenas ao Conselho Nacional de Saúde corrigir a Tabela SUS –o que sequer foi pedido na ação, e sim o reequilíbrio do contrato.
Por fim, ainda anotou que, no período da intervenção (de 13 de janeiro de 2005 a 17 de maio de 2013), eventuais deficiências deveriam ser cobradas dos réus –havendo déficit naquele momento. Nos demais períodos, constatou-se evolução no gerenciamento da ABCG.
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