Delegados da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul suspeitam que decisões recentes do delegado-geral da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Adriano Geraldo Garcia, estariam ligadas à suposta tentativa de interferir na briga pelo controle da contravenção em Campo Grande. Diversos colegas confirmaram ao Jornal Midiamax que 'estranham' o comportamento do chefe.
A crise já causou bate-boca em reunião oficial na DGPC (Delegacia-Geral da Polícia Civil) e os policiais temem represália por parte da cúpula.
Ao Midiamax, Adriano Garcia disse que as suspeitas são 'absurdas'. No entanto, colegas dele confirmam que várias unidades policiais da Capital foram arrastadas para uma série de 'batidas' contra anotadores do jogo do bicho em bairros de Campo Grande. As ações não teriam efeito prático e teriam isolado uma força-tarefa criada desde a Operação Omertà, que atingiu a contravenção na cidade.
Inicialmente, os delegados não se incomodaram por achar que participavam de uma ofensiva concentrada da Polícia Civil contra o jogo do bicho na Capital de MS. Mas, estranharam ao descobrir que as batidas foram organizadas em paralelo à atuação da força-tarefa após delegados supostamente terem mantido sob sigilo informações que investigados teriam tentado acessar através do delegado-geral da PCMS.
"Tirar equipe de uma especializada dos trabalhos cotidianos para isso isolando os colegas que estavam mais inteirados sobre o assunto é, no mínimo, estranho", confirmou um delegado à reportagem. Os delegados que integram a força-tarefa não quiseram se manifestar.
No alvo, só 'peões' da contravenção
Diversas unidades especializadas passaram a ser convocadas para as batidas, sempre às quintas-feiras. Porém, o foco dos 'arrastões', que ganharam nome de Operação 'Deu Zebra', ficou apenas nos anotadores e recolhedores de apostas, ou seja, a 'ponta fraca' do negócio.
Rapidamente, policiais mais experientes passaram a alertar os delegados de que supostamente estariam sendo usados para prejudicar ou ajudar envolvidos na verdadeira briga para assumir o controle da contravenção em Campo Grande.
A suspeita é de que as apreensões de bancas e prisões dos anotadores, conduzidas à margem das investigações oficiais originadas com a Operação Omertà, poderiam facilitar a liberação de espaço para um ou outro grupo contraventor.
Área limpa para loteria oficial
Além disso, logo após a primeira batida, passou a circular entre policiais e delegados rumores de que haveria um 'acordo de cima' para 'limpar' a área em Campo Grande e preparar terreno para uma grande negociação envolvendo a exploração oficial de jogos de azar.
Em 16 de setembro, a Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública) chegou a organizar uma coletiva de imprensa para 'explicar' a Operação Deu Zebra.
Ao Jornal Midiamax, o titular da Secretaria de Justiça, também delegado da Polícia Civil, Carlos Videira, chegou a admitir que a Lotesul, loteria oficial de MS aprovada pouco antes pelos deputados estaduais, será implantada e terá recursos convertidos para a segurança pública.
No entanto, Videira negou o favorecimento indireto de algum grupo implicado na luta pelo controle da contravenção em Campo Grande. "Qualquer 'órgão' que vier para Campo Grande para a exploração do jogo do bicho será combatido. A loteria oficial do Mato Grosso do Sul é a Lotesul, que vai abastecer diversos setores do Governo e o que for atrapalhar será combatido”, avisou Videira.
BO batendo na Corregedoria
Segundo apurou o Jornal Midiamax, as suspeitas dos delegados sobre o que poderia estar por trás das operações 'Deu Zebra' ganharam força no fim de setembro, com a interferência direta e pessoal do delegado-geral, Adriano Garcia, em uma demanda de advogados do Pantanal Cap. Eles pediram à DGPC a devolução de bilhetes apreendidos durante a Operação Black Cat.
No dia 28 de setembro, o próprio delegado-geral enviou um despacho à força-tarefa da Omertà solicitando informações sobre a apreensão do material e dando três dias para a resposta. O empenho logo gerou desconfianças.
"Um ato totalmente arbitrário. Qualquer um sabe que o correto seria o delegado-geral encaminhar esse pedido dos advogados à Corregedoria. Não ele mesmo despachar a pedido dos advogados", confirmou servidor da Polícia Civil que já atuou na Corregedoria.
Outros atos apontados como 'muito pessoais' por parte da DGPC são as operações semanais realizadas com quase todas as delegacias de Campo Grande. Logo após, outras fases da Omertà acabaram enfraquecidas, e a força-tarefa foi desmantelada sendo que a Operação Deu Zebra, que seria um desdobramento passou a ser feita com o envolvimento de todas as especializadas da Capital.
Com a primeira fase em 3 de setembro, a Operação Deu Zebra já teve 5 desdobramentos, sendo o último em 26 de outubro. Membros da Polícia Civil pontuaram que as fases foram todas divulgadas no site da Polícia Civil, diferente da Omertà, que das 7 fases teve apenas duas divulgadas pelo site oficial da instituição.
Portaria teria 'encabrestado' investigações
Outra iniciativa de Adriano Garcia que gerou desconfiança entre os colegas foi uma portaria publicada em 3 de setembro de 2021, que obrigou ações conjuntas com órgãos externos à Polícia Civil a terem autorização do delegado-geral e justificativa para a colaboração externa. Alguns delegados consideraram a medida uma tentativa de 'encabrestar' investigações, centralizando as informações.
Ainda segundo a portaria, o diretor do departamento que determinará em qual unidade o procedimento terá registro e tramitação.
Oficialmente, a atuação da Polícia Civil contra o jogo do bicho, tardia ou não, deveria ser inconteste. A contravenção desvia milhares dos cofres públicos deixando de recolher impostos e, Brasil afora, é suspeita de financiar atividades do crime organizado e grupos políticos. No entanto, para policiais civis que atuam há décadas em Mato Grosso do Sul, o histórico de vínculos entre atividades ilícitas e a cúpula da Polícia Civil não é novidade.
Delegados mais jovens questionando
A reportagem conversou com um delegado que se aposentou há poucos anos e acompanha de perto a crise instalada na cúpula.
Segundo ele, o verdadeiro 'racha' que se instalou na Polícia Civil de Mato Grosso do Sul está ligado à renovação dos quadros, com profissionais cada vez mais preparados tecnicamente e empenhados em valorizar a carreira, distanciando as condutas policiais dos interesses do poder, por exemplo.
"Estamos chegando a um ponto de questionamento interno sobre a postura da Polícia Civil com as relações de poder que se impõem e prejudicam a carreira. Mato Grosso do Sul tem um histórico de suspeitas sobre influência do crime organizado na atividade policial e isso não é novidade para ninguém. Já tivemos nomes citados em escândalos nacionais, recentemente tivemos que punir delegados flagrados em casos extremos até de homicídio, além de outros flagrados furtando até drogas de unidades policiais. Quer dizer..."
Segundo o delegado aposentado, que diz ter sido procurado por colegas mais novos pedindo conselhos, é natural e positivo o questionamento interno. "Todo mundo sempre fica com o pé atrás mesmo. Vai combater o jogo do bicho agora? Maravilha. Tem que fazer isso mesmo. Só que, no fundo, a gente já fica desconfiando dos interesses favorecidos até quando a polícia faz nada mais do que seu dever constitucional mesmo. Tem essa conversa da Lotesul rolando aí, que aprovaram... Ouvi alguma coisa sobre umas conversas até com empresas multinacionais interessadas no negócio... Então, não dá para gente simplesmente desqualificar o medo que essa menina expressou e reduzir a um caso de insubordinação. Se eu fosse o DG, pensaria muito antes de sair metendo PAD e achando que vai prender e arrebentar... Esse tempo acabou", analisa.
Jogo do bicho só em Campo Grande
Outro detalhe que chama a atenção dos delegados e reforça as suspeitas sobre segundas intenções nas operações Deu Zebra é o esforço de só 'enxergar' jogo do bicho em Campo Grande. "Fica difícil acreditar que é só uma postura de tolerância zero à contravenção, porque até o mais novo delegado sabe que o jogo do bicho está a plenos vapores no interior de MS também. Não vi nenhuma operação como essas em Dourados, por exemplo, que inclusive é a cidade do secretário", pondera.
'Manda quem pode, obedece quem tem juízo'
A 'menina' à qual o delegado de classe especial aposentado se refere é a delegada Daniella Kades. A policial atuou na força-tarefa criada para investigações da Operação Omertà quando era do Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubos a Banco e Resgate a Assaltos e Sequestros) e teve um áudio vazado de uma reunião na DGPC no começo de outubro, quando disse que não confia plenamente em setores da Polícia Civil.
'O clima já estava tenso muito antes dessa discussão na Delegacia-Geral de Polícia porque muitos colegas não entendem operações toda semana, divulgação em massa nas redes oficiais: qual o interesse da Polícia Civil em investigar o jogo do bicho em Mato Grosso do Sul só agora? Ou antes não tinha jogo ilegal?'. É assim que alguns dos delegados de Campo Grande resumem ao Jornal Midiamax os questionamentos que culminaram na tensão com o Delegado-Geral Adriano Geraldo Garcia.
Uma discussão acabou sendo gravada durante reunião no dia 1º de outubro. O episódio resultou em processo administrativo contra Kades. O delegado-geral Adriano Garcia teria cobrado da colega nomes de quem seriam as pessoas responsáveis pelo jogo do bicho atualmente. “Falei que eu sabia algumas, mas não de maneira enfática. Até mesmo porque se eu soubesse materialmente eu tinha obrigação de prender essas pessoas”, disse Kades.
“Eu sabia de maneira informal, até porque não é mais a força-tarefa que investiga o jogo do bicho. Então disse que não falaria”, pontuou. Neste momento, o delegado-geral teria determinado que ela falasse. “É uma prerrogativa do delegado, ainda tem investigação em andamento, inquérito. É uma garantia do delegado, então disse que não falaria. Naquele momento acabei sendo infeliz na colocação que não acreditava na polícia”, explicou Daniela.
Para punir a colega, o chefe da Polícia Civil de MS recorreu a um processo administrativo. Nele, Adriano diz que ao responder rispidamente Daniela transgrediu o artigo 155 da Lei Complementar nº 114/2005 que define, entre outras posturas, 'observar o princípio da hierarquia funcional'. A delegada disse ao Jornal Midiamax que prefere não comentar o procedimento, já que é interno.
Entre os delegados que aceitaram falar com a reportagem sem se identificar, a atitude de Adriano pode agravar o verdadeiro racha interno da Polícia Civil. "Essa tática do manda quem pode, obedece quem tem juízo pode dar muito ruim para a cúpula. Quem está na DGPC vai acabar virando alvo e vão achar até pelo em ovo, se buscarem", alerta um deles.
Delegados com vida sob risco em MS
Para a delegada, Adriano teria levado a afirmação de forma pessoal, quando ela se referia à corporação. “Expliquei ainda que minha vida e a de colegas da força-tarefa estavam em risco”, relatou Kades, que ainda contou ter sofrido ameaças veladas, bem como outras autoridades policiais.
“Eu não ia reportar aquilo, aquelas informações, em uma reunião com mais de 30 pessoas”, afirmou. A delegada ainda enfatizou que tudo o que ela sabe é reportado diretamente aos setores de inteligência da Polícia Civil e ao delegado-geral, por isso não precisaria dizer naquela reunião.
O delegado acabou dizendo que se ela não falasse por amor, falaria “pela dor”. Com isso, a delegada acabou sendo ouvida em procedimento no Dracco (Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado). “Todas as informações foram prestadas para a delegada Ana Cláudia Medina e inclusive disse os motivos por não revelar os nomes naquela reunião”, contou.
Já ao Jornal Midiamax, o delegado-geral disse que considera 'absurdas' as suspeitas dos colegas. "Como diretor, como gestor, eu preciso coibir e tenho o dever, para que a sensação de segurança não caia por terra para a população. A operação Omertà é maior que isso, não é dela (Daniela Kades)”, afirmou Adriano.
Adepol defende independência dos delegados
A Adepol-MS (Associação dos Delegados Policiais de Mato Grosso do Sul) se manifestou sobre o caso, repudiando qualquer ato que seja contrário à independência dos associados durante a atuação profissional. "Acreditamos e confiamos no sigilo das investigações, e em todos os atos administrativos necessários ao bom desenvolvimento dos trabalhos investigativos e institucionais".
Na manhã desta segunda-feira (8), enquanto as informações deste texto eram apuradas, ao menos 3 delegados entraram em contato com o Jornal avisando que a pressão continua. Segundo informações deles, colegas ligados à cúpula estariam ligando e 'convidando' os mais jovens a se posicionarem com uma nota pública de apoio ao chefe.
Sorteio no RJ e anotadores de 70 anos na mira da Polícia
A reportagem do Jornal Midiamax localizou um dos coordenadores do grupo que passou a explorar o jogo do bicho em Campo Grande após a Operação Omertà tirar a família Name do negócio. Segundo ele, as ações da Polícia Civil nas batidas de quinta-feira batizadas como 'fases' da 'Operação Deu Zebra' estariam mirando apenas no elo fraco do esquema de contravenção.
"Tivemos tiozinhos de quase 70 anos detidos e mantidos sem acesso ao advogado por várias horas, perambulando de delegacia em delegacia, porque eles estão perdidos, celulares de idosos apreendidos... Tem muita arbitrariedade aí para aparecer. Tem gente que eles fizeram assinar TCO dizendo que não precisava de advogado para isso", relata.
Segundo ele, no entanto, o impacto na operação é mínimo.
"Somos um grupo muito bem estabelecido. Lidamos só com o jogo do bicho mesmo, e não temos nada a ver com milícias, com crime organizado. Não mexemos com tráfico e geramos milhares de empregos, dando assistência para muitas famílias carentes", diz. "Nossos jogos são realizados com muita ordem e responsabilidade", complementa.
Outra novidade foi a adoção dos sorteios realizados no Rio de Janeiro. Assim, quando o resultado sai lá, vale também para quem apostou em Campo Grande. Segundo o responsável pelo Jogo do Bicho, as ofensivas inócuas da Polícia Civil poderiam sim estar ligadas ao interesse de favorecer concorrentes dele.
Jogo do bicho abandonado
"Isso aqui estava abandonado. Tinha muitas famílias largadas às minguas. Os recolhes estavam todos fazendo entrega no aplicativo para não morrer de fome, sem assistência alguma. Eu não trabalho assim. Meu pessoal diz que viviam verdadeira ditadura aqui, trabalhavam com medo de morrer por qualquer bobeira. Agora, quando eu assumi, certamente eu atingi os interesses de muita gente. Estão preparando o caminho aí para uma loteria estadual, né...", relata.
Vale lembrar, no entanto, que o jogo do bicho é uma contravenção penal no Brasil, onde jogos de azar só podem ser explorados pelo poder público.
Mesmo assim, ele diz que as repetidas ofensivas contra seus anotadores e recolhes, como são chamados os motoqueiros que recolhem as apostas, seriam fruto de 'acordo de cima para baixo'. "Meu problema não é a polícia. Nunca foi. Meu problema são algumas pessoas na polícia, que agem por interesses que nem sempre são apenas combater a contravenção. Eu sei que é uma contravenção", conclui.
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